Matriz Energética

Matriz energética: conformidade legal e energia como estratégia de negócio

Sumário

Matriz energética tratada como variável que reorganiza risco regulatório, custo de capital e estabilidade competitiva, quando a empresa precisa transformar rastreabilidade em evidência

O Brasil inicia qualquer discussão sobre competitividade industrial global com uma vantagem comparativa de difícil replicação por economias maduras. Os dados consolidados pelo Balanço Energético Nacional (BEN 2024), documento oficial da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), atestam que a matriz energética elétrica brasileira atingiu o patamar de 89,2% de renovabilidade. Enquanto concorrentes na Europa e Ásia mobilizam capitais intensivos para descarbonizar redes ainda dependentes de carvão e gás natural, o parque fabril nacional opera conectado a um sistema predominantemente hídrico, eólico e solar. Contudo, possuir o recurso físico constitui apenas uma das bases da pirâmide de valor, o diferencial para o acionista reside na capacidade da governança de transformar essa característica técnica em ativo financeiro auditável, juridicamente seguro e fiscalmente eficiente.

A materialidade financeira, sob a ótica das normas IFRS S1 e S2, exige que a gestão da matriz energética ultrapasse a esfera operacional de utilidades e ocupe o centro da estratégia corporativa. O insumo que movimenta a produção define, na atual conjuntura normativa, o custo de capital da companhia, a exposição a futuros passivos tributários decorrentes da Reforma Tributária e a perenidade dos contratos na cadeia global de suprimentos. A gestão deste ativo demanda, portanto, uma abordagem que integre a engenharia à controladoria jurídica e financeira, garantindo que o “ser sustentável” venha acompanhado do “provar a sustentabilidade”.

Por isso, trago alguns pontos que percebemos nas interlocuções com gestores de meio ambiente, Diretores de Sustentabilidade, auditores e consultores e lideranças empresariais.

Rastreabilidade da matriz energética e certificação como requisito financeiro

A publicação da Resolução CVM 193/2024 alterou o paradigma dos relatórios corporativos no Brasil, encerrando a era da sustentabilidade declaratória e inaugurando a fase da sustentabilidade prudencial. Ao internalizar as normas do International Sustainability Standards Board (ISSB), a Comissão de Valores Mobiliários impôs às companhias abertas — e, por efeito cascata, às suas cadeias de valor — a obrigatoriedade de relatar riscos e oportunidades climáticas com o mesmo rigor aplicado às demonstrações financeiras. Neste contexto, o Escopo 2, referente às emissões indiretas provenientes da aquisição de energia elétrica, torna-se um ponto de atenção crítica para a conformidade.

Embora o Sistema Interligado Nacional (SIN) seja majoritariamente limpo, o elétron entregue pela distribuidora é fisicamente indistinguível e carrega a média de emissões da rede, incluindo os despachos térmicos de ponta. Para fins de auditoria e cumprimento da norma IFRS S2, a indústria precisa comprovar a origem renovável de sua fração de consumo. A aquisição de energia no Mercado Livre (ACL) deve transcender a busca exclusiva pelo menor Preço de Liquidação das Diferenças (PLD). Uma estratégia jurídica robusta exige a contratação de energia amparada por Certificados de Energia Renovável (I-RECs) ou a celebração de Power Purchase Agreements (PPAs) com cláusulas específicas de rastreabilidade. Sem esses instrumentos, a energia consumida entra no balanço de carbono com o fator médio do grid, desperdiçando o ativo ambiental que o país oferece.

A integridade documental desses dados reverbera diretamente no acesso ao capital. A Resolução CMN 4.945/2021 obriga as instituições financeiras a incorporarem o risco social, ambiental e climático na avaliação de crédito de seus tomadores. Bancos de primeira linha utilizam a comprovação da matriz energética descarbonizada como critério fundamental para a classificação de risco (rating). Indústrias capazes de apresentar um inventário de emissões auditado e rastreável acessam linhas de financiamento com taxas mais atrativas e garantem elegibilidade para emissão de debêntures incentivadas ou Green Bonds. O custo do dinheiro, portanto, correlaciona-se inversamente à capacidade da empresa de comprovar, via documentos aceitos pelo mercado, a limpeza de sua matriz.

Licenciamento ambiental e a gestão de cronograma de projetos

Para mitigar a volatilidade de preços e garantir a origem da fonte, muitas organizações optam pela verticalização através da autoprodução. Investir em ativos próprios de geração — sejam parques solares, eólicos, biomassa ou Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) — apresenta-se como uma solução lógica. Entretanto, a materialidade financeira desses projetos é frequentemente corroída pelo risco do licenciamento ambiental, fator que deve ser precificado com rigor nas análises de viabilidade econômica.

A expansão da infraestrutura energética colide com a complexidade do rito administrativo brasileiro. O cenário atual da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, após a sanção e a subsequente derrubada de vetos pelo Congresso, aprofundou a insegurança jurídica. A reinstalação de dispositivos controversos mantém aceso o risco de judicialização e intensifica os conflitos de competência entre órgãos estaduais e o IBAMA, tornando a previsão do cronograma de obras ainda mais volátil.

Nesse contexto, a previsibilidade das licenças — Prévia (LP), de Instalação (LI) e de Operação (LO) — vincula-se diretamente à qualidade técnica dos estudos e à gestão estratégica das condicionantes ambientais. A capacidade de atender com rigor aos requisitos pactuados blinda o projeto contra questionamentos técnicos que deslocam a entrada em operação (COD). Para a diretoria executiva, eventuais falhas nessa condução regulatória resultam em capital imobilizado sem remuneração e exposição prolongada aos preços do mercado spot.

Adicionalmente, o Marco Legal da Geração Distribuída, instituído pela Lei 14.300/2022, alterou substancialmente a composição de custos para projetos de até 5 MW conectados à rede de distribuição. A incidência escalonada da tarifação sobre o uso do sistema (TUSD Fio B) exige uma revisão detalhada das modelagens financeiras para projetos de autoprodução remota ou geração compartilhada.

A viabilidade econômica, que antes se sustentava apenas na compensação de energia, agora depende de uma análise integrada entre a economia tarifária, os custos de conexão e o risco regulatório de atraso no licenciamento. A matriz de materialidade deve, portanto, tratar o licenciamento não como trâmite burocrático, mas como risco financeiro de alta relevância.

Mas sejamos francos: vencer a guerra regulatória para gerar a própria eletricidade resolve apenas a metade “fácil” da sua equação de carbono. O verdadeiro gargalo, aquele que o mercado financeiro começa a penalizar com mais rigor, não está na tomada, mas na chaminé e no tanque de combustível. Seus painéis solares não geram vapor industrial de alta pressão nem movem sua frota de caminhões, e é exatamente aí, na sua dependência térmica e logística, que reside o passivo que nenhuma bateria resolve.

rocha cerqueira

Transição térmica e soluções para a indústria

Enquanto a descarbonização elétrica possui rotas tecnológicas maduras, o desafio central da indústria de transformação reside nos processos térmicos e na movimentação de carga. Setores como siderurgia, cerâmica, vidro, cimento e química demandam calor de alta entalpia que a eletrificação, em muitos cenários, ainda não supre com eficiência técnica ou econômica. A dependência de combustíveis fósseis para caldeiras, fornos e frota pesada constitui o núcleo duro das emissões de Escopo 1 e exige soluções amparadas por novos marcos regulatórios.

A estratégia de transição encontra suporte na Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio, Lei 13.576/2017) e na Lei do Combustível do Futuro (Lei 14.993/2024, publicada em 9 de outubro de 2024). Enquanto o RenovaBio incentiva o uso de biometano e biomassa em substituição ao gás natural ou óleo BPF, permitindo à indústria participar do mercado de Créditos de Descarbonização (CBIOs), a nova Lei 14.993 ataca o custo logístico ao instituir mandatos de mistura para o Diesel Verde e o Combustível Sustentável de Aviação (SAF). Dependendo do arranjo contratual e da eficiência da planta (avaliada pela Nota de Eficiência Energético-Ambiental), a queima de combustível renovável pode gerar receitas acessórias ou abater metas corporativas de sustentabilidade.

Olhando para o longo prazo e para os setores de difícil descarbonização (hard-to-abate), o Marco Legal do Hidrogênio de Baixa Emissão (Lei 14.948/2024) estabelece as bases jurídicas para uma nova fronteira tecnológica. A Lei institui incentivos fiscais e define a governança para o desenvolvimento do hidrogênio verde e azul no país.

Para gestores industriais, o monitoramento da regulamentação deste mercado é mandatório para o planejamento de Capex da próxima década. A substituição tecnológica de ativos térmicos deve considerar a futura disponibilidade de hidrogênio competitivo, evitando o risco de lock-in em tecnologias fósseis que se tornarão obsoletas ou excessivamente taxadas.

O gerenciamento da matriz energética exige uma visão integrada. O esforço de descarbonização, da rastreabilidade elétrica à transição térmica e logística, impacta diretamente a margem de lucro e a competitividade global. Por isso que a tecnologia limpa deve ser convertida em um custo regulatório e tributário que maximize o valor final do seu produto.

Eficiência tributária e competitividade internacional

A gestão inteligente da matriz energética atua como um mecanismo de defesa patrimonial diante das transformações do sistema tributário nacional. A Reforma Tributária, consolidada pela Emenda Constitucional 132/2023, introduziu a figura do Imposto Seletivo. Com natureza extrafiscal, este tributo incidirá sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. É tecnicamente previsível que insumos energéticos de alta intensidade de carbono sejam alvo de alíquotas majoradas na regulamentação por Lei Complementar. Manter uma matriz energética fóssil equivale a assumir um passivo tributário latente. A descarbonização antecipada funciona, neste cenário, como um planejamento tributário preventivo, blindando a operação contra o aumento da carga fiscal sobre o carbono.

No front externo, a pressão regulatória materializa-se por meio do Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM), o mecanismo de ajuste de fronteira da União Europeia (Regulamento UE 2023/956). Produtos brasileiros exportados para o bloco, como aço, alumínio, cimento e fertilizantes, terão suas emissões embutidas taxadas caso superem os padrões europeus. A baixa intensidade de carbono da indústria brasileira, fruto da nossa matriz elétrica limpa e de iniciativas de eficiência energética balizadas pela Lei 10.295/2001, confere uma vantagem tarifária imediata. A correta certificação dessa pegada reduz ou elimina o pagamento da taxa de fronteira, tornando o produto nacional mais competitivo em preço final do que concorrentes que utilizam matrizes sujas.

que estabelece a Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia, e seus regulamentos exigem o cumprimento de índices de eficiência energética para equipamentos e processos. O descumprimento desses índices gera desperdício e pode criar um passivo operacional, impedindo a elegibilidade de equipamentos em programas de incentivo ou retrofits industriais. A gestão da eficiência energética é, portanto, um pilar do compliance operacional que complementa a gestão da matriz energética. A certificação de sistemas de gestão de energia, como a Norma ABNT NBR ISO 50001, de 2018, atesta a maturidade na gestão de ativos energéticos.

FAQ estratégico sobre matriz energética

A argumentação até aqui estabeleceu a matriz energética como um ativo de governança, risco e competitividade. No entanto, a aplicação prática desses conceitos sempre gera dúvidas pontuais. Para o leitor que já absorveu a tese, mas busca a precisão da aplicação, apresentamos as respostas diretas e sem rodeios para as questões mais comuns sobre a materialidade da energia:

1. A certificação I-REC é obrigatória para comprovar o uso de energia renovável no Mercado Livre?

Embora a compra de energia no ACL permita acesso a fontes renováveis, a rastreabilidade para fins de reporte (Escopo 2 zerado) em padrões internacionais (GHG Protocol, IFRS S2) exige a aposentadoria dos certificados de energia renovável (I-RECs) em nome da empresa ou contratos com garantia de origem. Sem isso, utiliza-se a média do grid nacional.

2. Como o Imposto Seletivo da Reforma Tributária impactará a escolha do combustível industrial?

A EC 132/2023 prevê a taxação de itens prejudiciais ao meio ambiente. Combustíveis fósseis e processos intensivos em emissões tendem a sofrer maior incidência tributária. A migração para biomassa, biometano ou eletrificação atua como estratégia de elisão fiscal lícita e proteção de margem a longo prazo.

3. Qual o impacto da Lei 14.300/2022 nos projetos de autoprodução solar da indústria?

A Lei instituiu a cobrança escalonada pelo uso do fio (TUSD Fio B) na compensação de energia. Isso reduz a atratividade de projetos remotos conectados na distribuição se comparados ao modelo antigo, exigindo recalibragem do payback. Projetos de geração onsite (junto à carga) ou no mercado livre sofrem impactos diferentes e devem ser analisados caso a caso.

4. O que é a “vantagem tarifária” no contexto do CBAM?

A vantagem tarifária significa que um produto brasileiro, com baixa intensidade de carbono comprovada por sua matriz energética limpa, pagará menos ou nenhuma taxa de ajuste de carbono na fronteira da União Europeia, em comparação com um produto similar de um país com matriz energética fóssil. Essa diferença de custo regulatório se traduz em maior competitividade de preço para o exportador brasileiro. A comprovação da baixa intensidade de carbono é o passaporte para o mercado europeu.

Governança e decisão de investimento

A matriz energética brasileira é um ativo estratégico que exige uma gestão à altura de sua importância. A integração entre a matriz de materialidade da companhia e sua política energética é o fundamento das decisões do Conselho de Administração.

Você, como executivo de alto nível, precisa incorporar a gestão da energia como uma questão de governança corporativa que define o custo de capital, a exposição a riscos fiscais e a capacidade de competir em mercados globais cada vez mais regulados.

A gestão coordenada desses marcos regulatórios, da CVM 193/2024 ao Marco do Hidrogênio, passando pela Resolução CMN 4.945/2021 e o CBAM, assegura a conformidade (compliance), mitiga riscos e maximiza a competitividade global da produção industrial brasileira. A verdadeira sofisticação reside em transformar o que é inerente (a matriz energética limpa) em algo que é estratégico: um ativo financeiro rastreável que sustenta a perenidade e o valor da companhia.

A decisão de investimento em energia, hoje, é uma decisão de posicionamento de mercado. Empresas que investem na rastreabilidade e na descarbonização de sua matriz energética estão, na prática, investindo em sua própria resiliência financeira e em sua capacidade de acessar mercados e capital em condições preferenciais. A complexidade regulatória que atravessa a matriz energética demanda interpretação qualificada e visão de negócio. Apoiamos conselhos e diretorias nesse processo e seguimos prontos para avançar na análise que sua empresa decide priorizar.

Adriana Rocha de Cerqueira

Gestora do Setor de Inteligência de dados. Atuação e expertise centradas em valer das competências digitais e metodologias ágeis para proporcionar aos profissionais e às organizações a melhor experiência com o acesso à informação jurídica.

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OAB MG 3.057

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